O espaço de escuta

[Palestra dos 17 de maio 07 – Instituto de Artes da Unesp – Campus de São Paulo Tradução de Paolo Rosenberg Colorni]

O espaço de escuta e de pensamento no atual contexto urbano e metropolitano

Desejo iniciar este encontro com uma reflexão sobre o mundo dos sons, ou seja, música e palavras difundidas no ambiente através da amplificação: este conjunto que no meu primeiro trabalho descrevi como um concerto envolvendo a cidade, é o elemento que cria a diferença entre a atual paisagem sonora urbana e aquela tradicional (com ruídos do tráfego e das construções).
O ruído exprime a conseqüência de um evento em curso, (por exemplo, ruído de uma maquina de lavar) diferentemente do som que antecipa um evento (por exemplo, o interfone, o alarme). De fato nós dizemos que a maquina de lavar faz ruído e que o interfone toca).
O ruído comparado com o som è insignificante. Mesmo sendo desagradável não exprime nada (nenhuma palavra, nenhuma música). Os ruídos em sua totalidade tendem a diminuir, pois a tecnologia se esforça para produzir máquinas cada vez mais silenciosas: não se chegará, todavia, ao silencio, porque elas aumentam em número.
Ao contrario aumentapropositalmente o nível sonoro das tecnologias comunicativas, pois exprimem sinais e informações publicitárias, que devem se fazer ouvir. Em época pós-moderna, o grande desenvolvimento dos serviços (que comportou o aumento da mobilidade e do consumo) está entre os principais mecanismos que ajudam a entender a atual invasão dos sons produzidos sobre parte do globo.
A difusão de equipamentos de reprodução sonora no nível de massa significou uma virada acústica importante em relação à revolução industrial e em seguida em relação ao tráfego.
Quando todos começaram a possuir a televisão e o transistor, alguns sons como os passos, o vozeio, o som de um músico de rua, foram cancelados, englobados no grande concerto metropolitano de sons reproduzidos, indistintos, dificilmente reconhecíveis: até uma simples fonte amplificada como o toque de um celular, não se consegue distinguir imediatamente.
Tudo isto segue uma contradição recorrente: o som nos è, todavia, amigo, com suas musiquetas, com suas frases. Ao contrario, o ruído das maquinas é considerado culpado.
Não percebemos, porém, que exatamente o som, com sua potencia expressiva e comunicativa, no momento em que não è requerido, se torna ruído, no sentido pior do termo. Diferentemente dos estrondos e zumbidos, o som reproduzido compete com a nossa voz e com nossos diálogos, exprimindo-se também ele através de música e palavras, como uma “terceira voz mecânica”.
O objetivo é aquele de contribuir para que o cidadão ouça com senso crítico o som amplificado assim como o faz com o ruído das maquinas e com a poluição do ar. Tenho o prazer de falar aqui no Brasil sobre esta contradição entre sons socialmente aceitos e o ruído considerado invés incômodo. Considero este país, no qual tive a sorte de vir mais vezes, acusticamente interessante.
Aqui ainda se encontram realidades urbanas que se mantiveram relativamente silenciosas, apesar da rápida consolidação das novas tecnologias, como no caso de Brasília que descrevi no meu último ensaio “A erosão do neutro”.
E como no caso de Londrina que revi depois de 10 anos e que agora encontrei mudada, com muitos novos prédios e lojas, mas também muitos gazebos, outdoors e sobretudo com uma difusão sonora amplificada que invade as ruas mais freqüentadas.
Na sociedade atual, no que diz respeito à difusão de sons amplificados, não existem mais confins e referências: o conjunto sonoro se difunde de acordo com as atividades desenvolvidas sobre o território.
Na sociedade de consumo, a concentração de serviços de venda e de entretenimento, comporta um movimento de pessoas, portanto um aumento de sons amplificados (tecnologia e alto-falantes que difundem música e informação).
È difícil imaginar uma sociedade arcaica exposta ao contínuo barulho dos alto-falantes. A sociedade de serviços prevê a concentração não homogênea de fontes sonoras, utilizadas individualmente e através de alto-falantes.
È esta, grosso modo, a essência do “concerto” que eu descrevo no meu ensaio “A cidade em concerto”: uma “orquestra” composta de infinitas tecnologias, cresce e domina o território.
E isto acontece através de adensamentos sonoros que podem acontecer à noite (onde houver locais de divertimento noturno), ou de dia (nos horários de maior afluência nas lojas) ou em certos períodos do ano (em feiras ou exposições). No novo cenário acústico não è necessária a grande indústria ou o centro urbano para criar o caos. Com poucas habitações qualquer atividade comercial e um pouco de veículos em circulação, já se articula um movimento de pessoas. A cidade, pequena ou grande, é envolvida num efeito de sons confusos e invasivos.
A terceira voz mecânica constitui o atual contexto sonoro urbano. O fenômeno investe uma dimensão ainda pouco considerada, ou seja, o espaço de recepção, onde cada um pode escutar e interagir.
Este é o espaço maior, que inclui todas as dimensões. O espaço físico se desenvolve a partir do solo enquanto o espaço de recepção não tem raízes e nem confins, mas igualmente pode se tornar objeto de posse e exploração mais ou menos direto: através das informações induzidas que o transformam em espaço publicitário e as músicas estrategicamente usadas pra atrair a atenção de turistas e consumidores.
Vivemos em um ambiente sempre e em qualquer lugar disponível a acolher sons reproduzidos, provenientes do uso individual das tecnologias e da instalação de equipamentos sonoros fixos. Os equipamentos sonoros fixos conseguem impor a mesma mensagem do alto, tornando-o único, de forma que a todos è transmitida a mesma música, a mesma frase, respeito aos sons e ruídos que provem de baixo (ou seja por parte de cada um). Uma única fonte sonora pode ocupar um amplo campo de recepção: com este termo indico um perímetro de espaço no qual todos escutam a mesma mensagem musical e falada (pode se tratar de um bar, de uma escola, de uma inteira praia como aquela de um hotel quando o alto-falante do clube ao lado está funcionando). Enquanto o espaço de recepção está em qualquer lugar, o campo de recepção se constitui e se desmancha através de infinitos pontos, não sempre acusticamente planejados: durante uma festa ou um concerto ao ar livre, ou mesmo em lugares de transito e concentração nos quais a presença de publico é sempre grande (como numa estação de metrô). Para que a mensagem seja captada e decifrada, o volume sonoro não pode estar abaixo de 70/80 decibéis.Este é o volume médio das mensagens publicitárias difundidas em um centro comercial ou numa estação ferroviária (estamos muito acima do nível normal de aceitabilidade). Este nível já comporta uma serie de patologias e mal estares que se verificam também a longo prazo.
O espaço público, da rua à sala de espera de um escritório, está gradativamente perdendo sua neutralidade, ou seja, a essencialidade do fundo acústico. É este o tema principal do meu último ensaio “A erosão do neutro”.
A área neutra representa o espaço público, no qual não são induzidos sons estranhos à funcionalidade primária: o ruído do trem é a conseqüência do fato que o trem funciona. Ao contrario a difusão de publicidade sonora na estação nada tem a ver com o transporte e as exigências de quem viaja. A área neutra è portanto dotada de uma função primária: atravessar, alcançar, passear (no caso de uma rua).
Alem da função primária tem uma função paralela (não secundária) de recuperação do próprio tempo. O tempo que uma pessoa transcorre num trem, numa sala de espera ou num restaurante, representa um intervalo durante o qual é possível fazer outras coisas: somente se o espaço é neutro, ou seja, somente se nenhuma voz mecânica impedir a pessoa de ler, de refletir ou de comunicar-se com outros sem ter que forçar a voz.
A erosão do neutro age sobre a função paralela de recuperação do tempo nos locais em que a pessoa não espera ser entretida com música (como numa discoteca ou num pub). Na sociedade do evento e da comercialização através de luzes e de música difusa, o espaço comum é compelido por elementos comunicativos que subtraem outro espaço: aquele do pensamento (ou seja o mais íntimo).
O fundo que há muito caracterizou as áreas comuns está cedendo o lugar a uma voz mecânica, que se impõe no ambiente através de equipamentos sonoros cada vez mais fixos, incorporados às estruturas, sobre os quais frequentemente não se pode intervir (nem quem teria a possibilidade), porque o sonoro funciona automaticamente com a estrutura no momento em que esta se torna operativa.
É mais fácil se conscientizar de um incomodo atribuível a um comportamento individual (um celular que toca) do que de um incomodo organizado e fixado no alto, até em ambientes que deveriam estar acusticamente protegido (escola, hospital).
Este tipo de difusão acústica, que ocupa inteiros edifícios e quadras, está modificando ulteriormente a paisagem sonora, em relação a quando começaram a difundir-se as tecnologias e os canais das rádios.
Curiosamente, também paises como a Inglaterra, que menos se converteram à utilização individual das tecnologias, foram igualmente invadidos pelos efeitos dos alto-falantes, seja nos pontos de venda como nos espaços abertos.
È a sonorização acústica das áreas urbanas que se torna estrutura, como os edifícios, como as ruas, passando a constituir uma patologia acústica que em primeiro lugar depende do ambiente, e sempre menos de comportamentos individuais.

A exploração do espaço de recepçaõ potencialmente social

A exploração direta do espaço de recepção, mediante sua musicalização, implica numa operação de compra e venda entre empresas: as que gerem o espaço e as que o adquirem como espaço publicitário. Esta especulação acontece com facilidade porque aplicar um alto-falante que difunde publicidade não é tão complexo como construir um prédio e mesmo assim rende dinheiro. As empresas se defendem dizendo que se trata de música e frases inócuas (no fim das contas não se trata de drogas ou pornografia). O espaço público continua sendo tal mas na realidade está gradativamente se privatizando segundo um processo não declarado, com a constituição de campos de recepção sempre maiores e legalizados. Esta dicotomia está na base da erosão da neutralidade das áreas comuns: a mesma manobra numa área de pouca freqüência, não traria nenhuma vantagem a nenhuma empresa particular.

Erosão do espaço físico e comunicativo

O espaço comunicativo deve ser analisado paralelamente ao espaço físico. A comercialização das áreas urbanas inclui uma compressão do espaço comunicativo: com o efeito dos alto-falantes dirigidos aos consumidores do som dos carros estacionados nas proximidades.
Este é um fenômeno que ultimamente atacou os centros históricos de algumas cidades italianas ricas como Bologna e Padova onde a improvisação de festas rave se tornou habitual.
Penso que as realidades urbanas italianas, neste sentido, precisam confronta-se com o problema da densidade populacional, diversamente do que acontece no Brasil onde suas cidades gozam de um maior espaço, onde talvez há um menor conflito entre a vida badalada e os residentes (até o presente momento).
O costume de sentar-se à mesa de um café em local agradável ao aberto é um costume que no Brasil só agora está se radicando, especialmente em lugares turísticos. Neste caso a musicalização é protagonista com seus alto-falantes e a televisão em área aberta.
Resulta mais fácil negligenciar o território quando este é legalmente transformado, trivialmente decorado e vulgarmente sonorizado. E a conseqüência se traduz numa surdez generalizada que se manifesta com dramaticidade nas ruas, pois a continua sonorização do espaço está tornando as pessoas sempre mais surdas à escuta dos sons mais fracos (como o som de um pedestre ou ciclista que passa).
Junto com alguns colegas italianos estou justamente pesquisando a taxa de acidentes automobilísticos devido a sobre exposição sonora e ao uso da comunicação telefônica durante a condução. Este fato de estar ao telefone durante a direção é extremamente grave porque isola completamente a pessoa do contexto real.
Por outro lado, mais a terceira voz mecânica se impõe no ambiente mais as pessoas tendem a se isolar através dos auriculares (como num circulo vicioso) È necessário ver se os efeitos desta surdez generalizada não irão com o tempo incidir no comportamento individual, também naqueles países onde o senso cívico continua sendo um valor socialmente congênito, como nos países da Europa central e do norte. E quanto ao Brasil é necessário ver se os efeitos do desenvolvimento da estrutura de serviços de entretenimento (férias, turismo, hotelaria, alimentação), não comprometerão em excesso o espaço publico. O que notei aqui, é que a exploração do espaço de recepção acontece através de uma única mensagem, com efeito centralizado. Muito por mérito dos operadores publicitários, então através de uma mensagem falada bastante eloqüente.
Neste sentido é de bom auspicio o novo regulamento imposto pelo prefeito de São Paulo, para impedir a poluição visual dos espaços públicos através de imagens e outdoors invasivos. Na Itália quase nenhuma autoridade se expressou neste sentido e o espaço público é em qualquer lugar transformado em espaço publicitário.

Conclusão

Falar de poluição sonora não é mais possível segundo a velha maneira, ou seja medindo o ruído através da quantidade: este parâmetro, ainda ligado ao ruído nas fábricas, goza, em alguns paises como a Itália, de algumas normativas hoje em fia inadequadas.
Como já disse, o sinal acústico deve se fazer ouvir. O som se exprime através de seu nível de pressão, mas sobretudo através do estado de solicitação que comporta. Onde existe uma ligação forte entre difusão sonora e consumo, se torna inútil falar de planejamento acústico urbano. A erosão do neutro acontece ali onde tem concentração de usuários e possíveis consumidores. Criar algumas áreas silenciosas comporta fatalmente a concentração de efeitos ruidosos erosivos em outras áreas comuns. E é exatamente do espaço comum que precisa partir de novo, através de uma intervenção de limpeza do supérfluo, sem por isso demonizar as tecnologias que nos permitem interagir à distância e concretizar os nossos contatos, como está acontecendo neste momento.
A comunicaçaõ é uma coisa e o espaço é outra coisa. O espaço público deve voltar a ser um espaço que favoreça a comunicação espontânea e também aquela grande riqueza que é a música, uma riqueza que na nossa cultura não falta e que é bem que seja recuperada.

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